Conto Extrafísico - Os cães que esperam


Era terça-feira quando Otávio morreu. Sem aviso, sem doença, sem despedida. Simplesmente caiu enquanto tomava café na varanda de casa. A xícara rachou ao bater no chão e, segundos depois, o coração também. Não houve tempo de pensar em nada. Nem medo. Apenas um ruído surdo no peito, um escurecer breve e... silêncio.

Quando “acordou”, não era mais terça. Não era mais tempo. Era outra coisa — algo denso, pesado, feito de névoa. Estava de pé, parado diante do próprio corpo no chão. A boca levemente torta. A camisa amassada. O jornal ainda dobrado ao lado. Tentou tocar o próprio braço e passou direto. Tentou gritar, mas o som morreu nele mesmo. E então percebeu: tinha cruzado o rio. Estava do outro lado.

O velório foi um fracasso, como quase tudo que tentou em vida.

A capela branca do crematório, com bancos de madeira gastos e ar-condicionado estalando, parecia mais uma sala de espera de hospital abandonado. Havia flores genéricas, as mesmas que a funerária colocava por padrão. Nenhum amigo. Nenhum parente distante. Só a esposa — sentada num canto, com os olhos secos — e três cachorros de rua na porta, abanando o rabo como se reconhecessem algo sagrado naquele corpo ausente.

Otávio observava tudo em silêncio. Ainda confuso. Tentava lembrar de quem era. Tinha sido bancário por décadas. Um homem correto. Sem escândalos. Sem glórias. Vivera como um peão civilizado. E agora ali estava ele: sozinho até na morte.

— É isso? — murmurou. — Trinta anos de serviço. Um apartamento quitado. Três planilhas de orçamento pessoal e nem um amigo pra carregar o caixão?

Ninguém respondeu. Nem precisava. Do lado de fora, um dos cachorros uivou, longo e triste.

A cremação foi rápida.

A esposa ficou até o fim. Tocou o caixão antes de ser levado. Não chorou. Apenas disse:

— Que você encontre luz... ou pelo menos sossego.

Quando a chama começou, Otávio sentiu algo puxá-lo por dentro. Um tipo de torção invisível, como se estivesse sendo passado de uma dimensão a outra por um funil de silêncio e calor. Depois: a queda.

Acordou num lugar escuro. Um vazio com cheiro de ferrugem e eco de vozes distantes. Sentiu medo. Depois vergonha. Depois uma fúria branda, como uma náusea moral. Olhou ao redor e viu outros como ele: sombras com olhos. Gente sem corpo. Vagando.

— Onde estou? — perguntou a um homem pálido de rosto afundado.

— Bem-vindo à beirada — disse o outro, com voz gasta. — Aqui é o entrelugar. Nem alto, nem baixo. Só o cão no meio.

— Cão?

— Isso aqui é o que alguns chamam de “umbral”. Mas é mais como um terminal espiritual. Você entra, mas não sabe pra onde vai. E quase ninguém ajuda. Aqui vale a lei do mais forte... e do mais consciente. Os outros... viram bruma.

Otávio sentou num banco de pedra. Sentia-se pequeno, encolhido no tempo. Como quem errou o caminho da própria vida e só descobriu tarde demais.

— Achei que ia encontrar paz — disse. — Ou Deus. Ou minha mãe.

O homem pálido riu.

— Ah, irmão... isso aí é propaganda celestial. Aqui a regra é outra. É cada um por si. Os de cima não descem. Os de baixo não sobem. A maioria fica rodando feito mosca.

— Então... não tem justiça?

— Aqui? Só tem hierarquia. Os iluminados vivem em condomínios vibracionais fechados. Os endinheirados do espírito. Têm exércitos, mestres, sabedoria. Nós? Nós somos gado energético. Servimos aos rituais deles sem saber. Uns ainda acham que estão “evoluindo”. Mas estão só pagando juros de karma vencido.

Otávio não respondeu. Mas algo nele começou a mudar. Um cansaço velho, que sempre esteve lá, só que agora sem anestesia.

No dia seguinte — se é que ali havia dias —, os mesmos cachorros do velório apareceram. Do nada. Como se soubessem onde ele estava.

— Vocês? — disse, surpreso.

Os cães olharam nos olhos dele. Um deles, preto e magro, aproximou-se e encostou o focinho na perna invisível de Otávio. E por um instante, ele sentiu algo. Um calor. Um afeto real.

O homem pálido assistiu de longe.

— Cães são viajantes — explicou. — Vão e voltam entre mundos. São guias. Amam sem contrato. Quando ninguém mais vem... são eles que aparecem.

Otávio se agachou e chorou, pela primeira vez desde a morte. Mas não era dor. Era algo mais próximo do reconhecimento. Ele, que nunca foi notado em vida, era agora visto por olhos sinceros, mesmo que de outra espécie.

Ali, no meio do entrelugar, cercado por sombras e caos, Otávio entendeu: havia Amor. Pouco. Escasso. Mas real. E onde há Amor — mesmo que vindo de um cachorro de rua — há caminho.

Talvez não houvesse céu. Talvez não houvesse luz.

Mas haveria travessia. Para onde? Quem de fato saberá? 



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Autoria e infos gerais>>> Este conto compõe o livro Viajantes da Luz na Escuridão - Contos Extrafísicos, criados a partir da 'Teoria do Mundo Além, Cão', de E. E-Kan, autor brasileiro. Mais infos aqui. Contato: ekanxiiilc3@gmail.com 

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