Análise minimalista dos poemas: "Lá vai verso!" e "Quem sou eu?" de Luiz Gama


Lá vai verso!

Quero também ser poeta,
Bem pouco, ou nada me importa
Se a minha veia é discreta
Se a via que sigo é torta
(F. X. de Novais)
Alta noite, sentindo o meu bestunto
Pejado, qual vulcão de flama ardente,
Leve pluma empunhei, incontinente
O fio das idéias fui traçando.
As Ninfas invoquei para que vissem
Do meu estro voraz o ardimento;
E depois, revoando ao firmamento,
Fossem do Vate o nome apregoando.
Oh! Musa da Guiné, cor de azeviche,
Estátua de granito denegrido,
Ante quem o Leão se põe rendido,
Despido do furor de atroz braveza;
Empresta-me o cabaço d'urucungo,
Ensina-me a brandir tua marimba,
Inspira-me a ciência da candimba,
As vias me conduz d'alta grandeza.
Quero a glória abater de antigos vates,
Do tempo dos heróis armipotentes;
Os Homeros, Camões — aurifulgentes,
Decantando os Barões da minha Pátria!
Quero gravar em lúcidas colunas
Obscuro poder da parvoíce,
E a fama levar da vil sandice
A longínquas regiões da velha Báctria!
Quero que o mundo me encarando veja
Um retumbante Orfeu de carapinha,
Que a Lira desprezando, por mesquinha,
Ao som decanta de Marimba augusta;
E, qual Aríon entre os Delfins,
Os ávidos piratas embaindo —
As ferrenhas palhetas vai brandindo,
Com estilo que presa a Líbia adusta.
Com sabença profunda irei cantando
Altos feitos da gente luminosa,
Que a trapaça movendo portentosa
A mente assombra, e pasma à natureza!
Espertos eleitores de encomenda,
Deputados, Ministros, Senadores,
Galfarros Diplomatas — chuchadores,
De quem reza a cartilha da esperteza.
Caducas Tartarugas — desfrutáveis,
Velharrões tabaquentos — sem juízo,
Irrisórios fidalgos — de improviso,
Finórios traficantes — patriotas;
Espertos maganões, de mão ligeira,
Emproados juízes de trapaça,
E outros que de honrados têm fumaça,
Mas que são refinados agiotas.
Nem eu próprio à festança escaparei;
Com foros de Africano fidalgote,
Montado num Barão com ar de zote —
Ao rufo do tambor, e dos zabumbas,
Ao som de mil aplausos retumbantes,
Entre os netos da Ginga, meus parentes,
Pulando de prazer e de contentes —
Nas danças entrarei d'altas cayumbas.


(SILVA, Júlio Romão da. Luiz Gama e suas poesias satíricas. 2 ed. Rio de Janeiro:
Cátedra; Brasília: INL, 1981. p.110-112.)

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Luiz Gama foi um importante poeta, jornalista, advogado e abolicionista brasileiro do século XIX. Ele foi uma figura fundamental na luta pela abolição da escravidão no Brasil, tendo sido ele próprio um ex-escravo. Gama é conhecido por suas poesias satíricas que criticavam a sociedade e o sistema escravocrata. Suas obras eram marcadas por um forte engajamento político e social, e ele usava a poesia como uma forma de denunciar as injustiças e a opressão presentes na sociedade da época. Gama também foi um dos primeiros advogados negros do Brasil e atuou de forma proeminente na defesa dos direitos dos escravizados e dos libertos. Ele é considerado uma figura importante na história do movimento abolicionista no Brasil. (SILVA, Júlio Romão da. Luiz Gama e suas poesias satíricas. 2 ed. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1981. p.110-112.)

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Análise

O poema "Lá vai verso!" de Luiz Gama é um poema satírico que expressa a vontade do autor de ser um poeta. Ele menciona a musa da Guiné e seu desejo de desafiar poetas antigos, usando um estilo de música africana e criticando políticos corruptos. O poema termina com uma referência a uma festa africana em que o autor participa. O poema aborda questões de identidade e crítica social.

Tema: O texto retrata a vontade do autor de ser reconhecido como poeta e de glorificar a cultura africana, ao mesmo tempo que critica a corrupção e a hipocrisia na sociedade.

Aspectos formais: O poema é escrito em forma de versos livres, com uma linguagem poética e metafórica. Ele invoca elementos da cultura africana, como a marimba e a musa da Guiné.

Contexto: O autor expressa sua vontade de ser reconhecido como poeta, ao mesmo tempo que critica políticos corruptos, eleitores desonestos e a sociedade hipócrita. Este contexto pode ser associado ao período de escravidão e pós-abolição no Brasil.

Elementos:

  • O poema "Lá Vai Verso!" de Luiz Gama apresenta elementos de sátira e crítica social.
  • O poeta expressa seu desejo de ser reconhecido como um grande poeta, desafiando os padrões estabelecidos.
  • Há referências a figuras mitológicas e históricas, como Orfeu, Aríon e os piratas, que são usadas para destacar a grandeza poética que o autor almeja.
  • Críticas diretas são feitas a políticos, diplomatas e outros membros da elite, acusados de trapaça e esperteza.
  • O poeta também faz uma autocrítica, indicando que ele próprio não escapará das festanças e da corrupção, satirizando a sociedade como um todo.
  • A poesia de Luiz Gama exibe um desejo por reconhecimento, uma busca por grandeza e uma crítica contundente à sociedade de sua época.



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OUTRO POEMA DE LUIZ GAMA ANALISADO

 

Quem sou eu?


Quem sou eu? que importa quem?
Sou um trovador proscrito,
Que trago na fronte escrito
Esta palavra — Ninguém! —
(A. E. Zalvar — Dores e Flores)
Amo o pobre, deixo o rico,
Vivo como o Tico-tico;
Não me envolvo em torvelinho,
Vivo só no meu cantinho:
Da grandeza sempre longe,
Como vive o pobre monge.
Tenho mui poucos amigos,
Porém bons, que são antigos,
Fujo sempre à hipocrisia,
À sandice, à fidalguia;
Das manadas de Barões?
Anjo Bento, antes trovões.
Faço versos, não sou vate,
Digo muito disparate,
Mas só rendo obediência
À virtude, à inteligência:
Eis aqui o Getulino
Que no pletro anda mofino.
Sei que é louco e que é pateta
Quem se mete a ser poeta;
Que no século das luzes,
Os birbantes mais lapuzes,
Compram negros e comendas,
Têm brasões, não — das Kalendas,
E, com tretas e com furtos
Vão subindo a passos curtos;
Fazem grossa pepineira,
Só pela arte do Vieira,
E com jeito e proteções,
Galgam altas posições!
Mas eu sempre vigiando
Nessa súcia vou malhando
De tratantes, bem ou mal
Com semblante festival.
Dou de rijo no pedante
De pílulas fabricante,
Que blasona arte divina,
Com sulfatos de quinina,
Trabusanas, xaropadas,
E mil outras patacoadas,
Que, sem pinga de rubor,

Diz a todos, que é DOUTOR!
Não tolero o magistrado,
Que do brio descuidado,
Vende a lei, trai a justiça
— Faz a todos injustiça —
Com rigor deprime o pobre
Presta abrigo ao rico, ao nobre,
E só acha horrendo crime
No mendigo, que deprime.
- Neste dou com dupla força,
Té que a manha perca ou torça.
Fujo às léguas do lojista,
Do beato e do sacrista —
Crocodilos disfarçados,
Que se fazem muito honrados,
Mas que, tendo ocasião,
São mais feroz que o Leão.
Fujo ao cego lisonjeiro,
Que, qual ramo de salgueiro,
Maleável, sem firmeza,
Vive à lei da natureza;
Que, conforme sopra o vento,
Dá mil voltas num momento.
O que sou, e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfunados,
Vomitando maldições,
Contra as minhas reflexões.
Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receiosos
Hão de chamar-me Tarelo,
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muito vasta.
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus, e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...

Aqui, nesta boa terra
Marram todos, tudo berra;
Nobres Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas,
Deputados, senadores,
Gentis-homens, veadores;
Belas Damas emproadas,
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, Cabos, Furriéis,
Brigadeiros, Coronéis,
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar-e-guerra,
— Tudo marra, tudo berra —
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos Anjinhos
Também há muitos bodinhos. —
O amante de Syiringa
Tinha pêlo e má catinga;
O deus Mendes, pelas contas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove quando foi menino,
Chupitou leite caprino;
E, segundo o antigo mito,
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão;
Nos lundus e nas modinhas
São cantadas as bodinhas:
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada!
 

(SILVA, Júlio Romão da. Luiz Gama e suas poesias satíricas. 2 ed. Rio de Janeiro:
Cátedra; Brasília: INL, 1981. p.177-181.)

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O poema "Quem sou eu" de Luiz Gama é um poema satírico em que o autor reflete sobre a sua identidade e posicionamento na sociedade. Ele se descreve como um trovador proscrito, que vive de acordo com seus próprios princípios, afastado da hipocrisia e da falsa nobreza. Gama critica figuras de autoridade e poder, como magistrados e religiosos, denunciando a injustiça social. Ele também discute a questão racial e a diversidade humana, ironizando a preocupação excessiva com etiquetas sociais e a busca por uma suposta superioridade. Ao longo do poema, Gama usa o humor e a sátira para expressar sua visão crítica da sociedade de sua época.

Tema: O texto é uma poesia satírica que critica a sociedade da época, especialmente a hipocrisia, injustiça e corrupção.

Aspectos formais: O texto é escrito em forma de poesia, com versos e rimas, e utiliza de ironia e humor para transmitir suas críticas.

Contexto: O autor, Luiz Gama, é um trovador proscrito que critica a sociedade, o sistema judiciário e a corrupção, enquanto se posiciona como defensor do pobre e crítico da hipocrisia e da falsa nobreza. Ele também aborda o preconceito racial e social, questionando os valores da sociedade da época.

Elementos:
  • Sarcasmo e ironia: O poema utiliza sarcasmo e ironia para fazer críticas, como quando menciona que o eu lírico vive como o Tico-tico e ressalta que bodes podem ser de diversas castas, sejam nobres, pobres, sábios ou tratantes.
  • Crítica social: O poema critica a sociedade da época, mencionando a hipocrisia, a injustiça social e o desdém por parte dos poderosos em relação aos menos favorecidos.

  • Autodepreciação: O eu lírico se descreve de forma autodepreciativa, mencionando que faz versos, mas não é um vate, e que seus versos podem conter disparates.

  • Identidade: O poema aborda questões relacionadas à identidade, fazendo referência à sua cor de pele e a comparações com um bode, e ressaltando que, no entanto, isso não importa, pois existem bodes de todas as castas.

  • Crítica à religião e à autoridade: O poema critica figuras religiosas, como beato e sacrista, assim como figuras de autoridade, como magistrados

     

     (Com LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro) 


    OBS: observem que a grafia do nome varia de Luís Gama a Luiz Gama, conforme data de escritos e publicações em épocas diversas. 

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    _________Emerson

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