Os idiotas confessos. Texto de Nelson Rodrigues (1968)
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Os Idiotas Confessos
Nelson Rodrigues
Antigamente, o idiota era o idiota. Nenhum ser tão sem mistério e
repito: — tão cristalino. O sujeito o identificava, a olho nu, no meio
de milhões. E mais: — o primeiro a identificar-se como tal era o próprio
idiota. Não sei se me entendem. No passado, o marido era o último a
saber. Sabiam os vizinhos, os credores, os familiares, os conhecidos e
os desconhecidos. Só ele, marido, era obtusamente cego para o óbvio
ululante.
Sim, o traído ia para as esquinas, botecos e retretas gabar a infiel:
— “Uma santa! Uma santa!”. Mas o tempo passou. Hoje, dá-se o inverso. O
primeiro a saber é o marido. Pode fingir-se de cego. Mas sabe, eis a
verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia endereço, hora, dia etc. etc.
Pois o idiota era o primeiro a saber-se idiota. Não tinha nenhuma
ilusão. E uma das cenas mais fortes que vi, em toda a minha infância,
foi a de uma autoflagelação. Um vizinho berrava, atirando rútilas
patadas: — “Eu sou um quadrúpede!”. Nenhuma objeção. E, então, insistia,
heróico: — “Sou um quadrúpede de 28 patas!”. Não precisara beber para
essa extroversão triunfal. Era um límpido, translúcido idiota.
E o imbecil como tal se comportava. Nascia numa família também de
imbecis. Nem os avós, nem os pais, nem os tios, eram piores ou melhores.
E, como todos eram idiotas, ninguém pensava. Tinha-se como certo que só
uma pequena e seletíssima elite podia pensar. A vida política estava
reservada aos “melhores”. Só os “melhores”, repito, só os “melhores”
ousavam o gesto político, o ato político, o pensamento político, a
decisão política, o crime político.
Por saber-se idiota, o sujeito babava na gravata de humildade. Na
rua, deslizava, rente à parede, envergonhado da própria inépcia e da
própria burrice. Não passava do quarto ano primário. E quando cruzava
com um dos “melhores”, só faltava lamber-lhe as botas como uma cadelinha
amestrada. Nunca, nunca o idiota ousaria ler, aprender, estudar, além
de limites ferozes. No romance, ia até ao Maria, a desgraçada.
Vejam bem: — o imbecil não se envergonhava de o ser. Havia plena
acomodação entre ele e sua insignificância. E admitia que só os
“melhores” podem pensar, agir, decidir. Pois bem. O mundo foi assim, até
outro dia. Há coisa de três ou quatro anos, uma telefonista aposentada
me dizia: — “Eu não tenho o intelectual muito desenvolvido”. Não era
queixa, era uma constatação. Santa senhora! Foi talvez a última idiota
confessa do nosso tempo.
De repente, os idiotas descobriram que são em maior número. Sempre
foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais
descobriram: — a vergonhosa inferioridade numérica dos “melhores”. Para
um “gênio”, 800 mil, 1 milhão, 2 milhões, 3 milhões de cretinos. E,
certo dia, um idiota resolveu testar o poder numérico: — trepou num
caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma multidão. O orador
teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A multidão crescia
como num pesadelo. Em quinze minutos, mugia, ali, uma massa de meio
milhão.
Se o orador fosse Cristo, ou Buda, ou Maomé, não teria a audiência de
um vira-lata, de um gato vadio. Teríamos de ser cada um de nós um
pequeno Cristo, um pequeno Buda, um pequeno Maomé. Outrora, os imbecis
faziam platéia para os “superiores”. Hoje, não. Hoje, só há platéia para
o idiota. É preciso ser idiota indubitável para se ter emprego,
salários, atuação, influência, amantes, carros, jóias etc. etc.
Quanto aos “melhores”, ou mudam, e imitam os cretinos, ou não
sobrevivem. O inglês Wells, que tinha, em todos os seus escritos, uma
pose profética, só não previu a “invasão dos idiotas”. E, de fato, eles
explodem por toda parte: são professores, sociólogos, poetas,
magistrados, cineastas, industriais. O dinheiro, a fé, a ciência, as
artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos patetas.
E, então, os valores da vida começaram a apodrecer. Sim, estão
apodrecendo nas nossas barbas espantadíssimas. As hierarquias vão ruindo
como cúpulas de pauzinhos de fósforos. E nem precisamos ampliar muito a
nossa visão. Vamos fixar apenas o problema religioso. A Igreja tem uma
hierarquia de 2 mil anos. Tal hierarquia precisa ser preservada ou a
própria Igreja não dura mais quinze minutos. No dia em que um coroinha
começar a questionar o papa, ou Jesus, ou Virgem Maria, será exatamente o
fim.
É o que está acontecendo. Nem se pense que a “invasão dos idiotas” só
ocorreu no Brasil. Se fosse uma crise apenas brasileira, cada um de nós
podia resmungar: — “Subdesenvolvimento” — e estaria encerrada a
questão. Mas é uma realidade mundial. Em que pese a dessemelhança de
idioma e paisagem, nada mais parecido com um idiota do que outro idiota.
Todos são gêmeos, estejam uns aqui, outros em Cingapura.
Mas eu falava de que mesmo? Ah, da Igreja. Um dia, ao voltar de Roma,
o dr. Alceu falou aos jornalistas. E atira, pela janela, 2 mil anos de
fé. É pensador, um alto espírito e, pior, uma grande voz católica.
Segundo ele, durante os vinte séculos, a Igreja não foi senão uma lacaia
das classes dominantes, uma lacaia dos privilégios mais hediondos.
Portanto, a Igreja é o próprio Cinismo, a própria Iniqüidade, a própria
Abjeção, a própria Bandalheira (e vai tudo com a inicial maiúscula).
Mas quem diz isso? É o Diabo, em versão do teatro de revista? Não. É
uma inteligência, uma cultura, um homem de bem e de fé. De mais a mais, o
dr. Alceu tinha acabado de beijar a mão de Sua Santidade. Vinha de
Roma, a eterna. E reduz a Igreja a uma vil e gigantesca impostura. Mas
se ele o diz, e tem razão, vamos, já, já, fechar a Igreja e
confiscar-lhe as pratas.
Cabe então a pergunta: — “O dr. Alceu pensa assim?”. Não. Em outra
época, foi um dos “melhores”. Mas agora é preciso adular os idiotas,
conquistar-lhes o apoio numérico. Hoje, até o gênio se finge imbecil.
Nada de ser gênio, santo, herói ou simplesmente homem de bem. Os idiotas
não os toleram.
E as freiras põem short, maiô e posam para Manchete
como se fossem do teatro rebolado. Por outro lado, d. Hélder quer missa
com reco-reco, tamborim, pandeiro e cuíca. É a missa cômica e Jesus
fazendo passista de Carlos Machado. Tem mais: — o papa visitará a
América Latina. Segundo os jornais, teme-se que o papa seja agredido,
assassinado, ultrajado etc. etc. A imprensa dá a notícia com a maior
naturalidade, sem acrescentar ao fato um ponto de exclamação. São os
idiotas, os idiotas, os idiotas. [19/8/1968]
Comentários
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Que a balança da justiça cósmica pese mais para o lado do bem e dos atos bons no final! Luz!